terça-feira, 25 de junho de 2024

Crônica de Iaiá no. 03 – Na Reunião - Por Aldir Guedes Soriano

 

            Figura 1- Imagem 'Noite estrelada' concebida pelo autor e gerada através de tecnologia de IA da OpenAI's DALL-E."

São Paulo, 08 de outubro de 2040.


Na companhia de seu assistente robótico, Thomaz Lúcio entra no elevador do Brasil Século 21, o prédio mais alto do mundo com 257 andares, situado na Avenida Paulista, próximo ao Masp. Estava preocupado com a crise conjugal de Micaela e Iago.[1] À medida que o elevador no. 17 sobe, Lúcio se tranquiliza. Fazia discretos exercícios respiratórios enquanto contemplava a cidade. Cada vez mais alto... cada vez mais leve, mais alto... mais calmo.[2] O azul límpido do céu de brigadeiro lhe transmitia tranquilidade. Ao mirar em direção à zona norte, podia visualizar as águas diáfanas do rio Tietê singradas por pequenas embarcações repletas de turistas estrangeiros. Voltando-se para o sudoeste visualizava a Ponte Estaiada e as águas despoluídas do Rio Pinheiros. 

— Mestre, posso notar que, apesar da tensão desta manhã, o senhor está se saindo muito bem. Percebo isso através das ondas eletromagnéticas que o seu coração está emitindo neste momento. 

— Isso parece bom, XOZ, mas não entendo muito bem como isso funciona.  

—  Eu também não compreendo. Há coisas que uma rede neural artificial não pode compreender, — respondeu o Robô. Humanos são de Marte, Robôs são de Vênus.[3]

 

            O elevador parou no 62º andar. Entraram dois membros da Comunidade Libertária de IA, acompanhados por um enorme humanoide Thunderbird-07. Todos os seres ali reunidos se saudaram afetuosamente, porém os robôs se calaram em seguida e permaneceram desligados, enquanto os humanos passaram a conversar animadamente.

 

            No 254andar, sede da Comunidade Libertária de IA, o grupo caminha por corredores até chegar em uma bifurcação. Robôs se dirigem para um lado, humanos para o outro. Homens e mulheres entram na sala de reunião e se juntam em torno de uma grande mesa de mogno escuro, lembrando a Távola Redonda do lendário Rei Arthur. À mesa, havia água, café de verdade, diários e canetas tinteiro. Nada de telas ou dispositivos eletrônicos. 

 

É evidente a necessidade urgente de se fortalecer os vínculos e os relacionamentos humanos, conforme o relatório anual da Comunidade. A indisponibilidade humana e o medo deixaram as pessoas isoladas, vulneráveis e ávidas por interagir com seres artificiais, que estão sempre disponíveis e são dotados de ilimitada paciência. Por vezes, esses parecem ser mais acolhedores e compreensivos. Assim, a interação com sistemas de IA pode ser mais atraente para um ser humano emocionalmente carente. O mau uso de dispositivos eletrônicos emburrece, causa distração, pensamentos repetitivos, depressão e, enfim, mais solidão, fechando um círculo vicioso.[4]

 

Em seguida, o Presidente encerou a reunião dizendo... 

— A convivência humana é complicada, mas precisamos voltar a cativar uns aos outros.[5]

— Agora todos estão convidados para o jantar patrocinado pela Editora e Livraria Fênix. 

— Todos receberão um kit de três livros clássicos encadernados com legítimo couro.  

 

Após o magnífico jantar... O elevador no 17 descia e, quando restava apenas um ser humano, Lúcio, o robô XOZ se religou. Ouvia-se uma “versão gregoriana de Stairway to Heaven.” Thomas Lúcio mirava o céu límpido e estrelado. Maravilhado, localizou a lua crescente e os planetas Marte, Vênus e Saturno.

— Foi um longo dia, disse Lúcio. 

— Anoiteceu, mas ainda não acabou a sua jornada! — Devo lembrá-lo de que o Mestre ainda tem alguns compromissos. Precisa pagar algumas contas e comparecer presencialmente na consulta médica agendada com o seu clínico geral. 

— Respire fundo! — Aconselhou, XOZ. 

 

 

Notas 

Crônica originalmente publicada no jornal O Imparcial de Presidente Prudente, em 25 de junho de 2024.



[1] Sobre a crise conjugal de Micaela e Iago, Vide crônica anterior.

[2] Referência literária: Escada de minha mansarda de Guilherme de Almeida.

[3] Parafraseando John Gray, para quem “Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus.”

[4] Sobre emburrecimento humano, vide a “A fábrica de cretinos digitais” de Michel Desmurget.

[5] Referência literária: Livro “O pequeno príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry.

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